PAIXÃO, DOR E DESEJO NA POESIA
DE MIGUEL HERNANDÉZ
Sylvia H. Cyntrão
Universidade de Brasília
[Texto publicado na obra:
PÉREZ-LABORDE, Elga; NEVES, Rozana Reigota (orgs.) Voz poética e dramática de
Miguel Hernández. Organizadoras; Elga Pérez-Laborde e Rozana Reigota Naves.
Campinas, SP: Pontes Editoras, 2024. Quadros, fotografias. 194 p.]
A paixão que se explica
As reflexões que se seguem foram pensadas especialmente para o importante evento, em homenagem ao poeta espanhol Miguel Hernandez, coordenado pela profa. Dra. Elga Laborde. Minha participação entra em linha com a missão acadêmica que assumi como pesquisadora da área, no Programa de pós-graduação em literatura do Instituto de Letras da Universidade de Brasília, de trazer a literatura a ser pensada junto às práticas sociais.
Antes de começar a escrever o que venho apresentar, revisitei livros, garimpei poemas nas antologias, mergulhei nas biografias do poeta, descobri novas críticas acadêmicas em teses e cotejei as traduções. Essa tarefa me trouxe a certeza de que não estaria apenas visitando um escritor em seu tempo, mas que estaria com ele também refletindo sobre o mundo contemporâneo, tal a atualidade das questões existenciais e sociais que problematiza em seus versos e que permanecem exigindo novas respostas.
Miguel Hernandez escreveu sobre a vida e sobre a morte, em temáticas com nuances variadas que contemplam as tensões existenciais na ligação entre os homens e a natureza e entre os homens e seus semelhantes. Falou e escreveu sobre as injustiças sociais, a maldade e a bondade e sobre os diversos níveis de amor e paixão, no auge de sua vida como jovem adulto.
Uma convergência de datas de que eu não havia me dado contas antes nutriu em muito o que desenvolvi nessas linhas, já que somos seres de memória e os fatos a ela ligados nos constituem. Miguel Hernández nasceu em 30 de outubro de 1910. Eu nasci também em um 30 de outubro. Dentre as centenas de poetas que li, analisei e promovi, nunca encontrei um que tenha nascido nessa data. Os cientistas diriam que, por estatística, esse fato de um poeta e uma professora de literatura terem datas coincidentes de nascimento não tem importância maior e está no rol das probabilidades. Mesmo que concordemos com essa simplificação, no entanto percebi uma convergência anímica que se sustenta por outros dados e por eles os cientistas se eximiriam da atitude de negação, ao menos, visto que trabalhamos aqui com a matéria fluida -o sensível sobre o inteligível- objeto de pesquisas médicas, desde o psiquiatra Sigmund Freud.
Hernández foi contemporâneo de Lorca, poeta que li espontaneamente na adolescência, tendo inspirado muitos de meus poemas à época. A literatura espanhola pela via de seu intenso lirismo causou grande impacto em minha escolha acadêmica, apesar de ter me formado em português-francês na graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e não em português-espanhol. Curiosamente, minha primeira viagem a congressos não foi para a França, base de minha formação, mas para Salamanca, em que tive a oportunidade de, estando na Espanha, conhecer Granada, a terra natal de Lorca, e onde pude mergulhar nos cheiros e nas magníficas visõesgeográficas expressas pelo poeta “encharcado de lirismo”,como está no magnífico poema “Ritmo de outono”2. Senti-me em casa, sendo o país estrangeiro com que mais me identifico.
Uma pesquisa tardia de família, mostrou-me, inclusive, para minha surpresa, que talvez meus antepassados tenham sido espanhóis e não portugueses, como pensávamos. O portador do nome Cyntrón pode ter migrado a Portugal transformando-se no popular Cyntrão. A confirmar...Tudo que relato convergiu, penso, para que eu pudesseme unir a esse seleto grupo de pesquisadores que afirmam a importância do legado poético e humanitário de Miguel Hernández.
Finalizo esse primeiro momento lembrando o conhecido ditado popular galês “Yo non creo en las brujas, pero que las hay, las hay...”,que enuncia o personagem Sancho Pança, em Dom Quixote, do inigualável Miguel de Cervantes, o precursor espanhol dos grandes de que aqui tratamos, entendendo “brujas” como a força das ocorrências que nos cercam, inexplicáveis pela lógica cartesiana.
A dor vívida e estetizada
Fiz aqui as conexões pessoais anteriores porque não imagino falar o inteligível sem o sensível. Creio que Hernández concordaria. Não imagino falar sem evidenciar que a construção de uma trajetória se dá, muitas vezes, por caminhos que parecem estar para nós já postos antes mesmo dos passos. É preciso, no entanto, dar os passos para que o caminho exista. Ninguém melhor do que Antonio Machado para nos lembrar disso, e cito aqui seus versos: “caminhante não há caminho/se faz o caminho ao andar”. Nisso acredito!
Apesar dos estudos intensivos da literatura francesa, minhas leituras de Lorca levaram-me também a Antonio Machado, ainda mais, quando, trabalhando em pesquisas sobre a canção popular fui levada ao performático cantor e compositor Juan Manoel Serrat que musicou preciosas letras dessa dupla, aos quais se juntava Miguel Hernández, formando, então, minha tríade inabalável.
Nosso poeta que nasceu em 30 de outubro de 1910, morreu em 28 de março de 1942, com apenas 31 anos de idade, numa prisão em Alicante, de pneumonia, após complicações causadas por uma febre tifoide. Foi vítima do regime ditatorial de Francisco Franco que embora o tenha condenado à pena de morte comutou sua pena para 30 anos por não querer repercussões vitimizadoras, dizia. Morreu muito jovem, mas deixou um vasto legado artístico irrepetível. Em sua poesia, a experiência trágica e direta da morte e da prisão são combinadas com uma visão singular da natureza e do amor, em que exalta o corpo, os espaços em que habita e o transformam e as emoções daí decorrentes. A inquietude se converte num método para estar vivo.
Outra convergência que tive que deixar em aberto por ora, mas que entendo como importante de ao menos mencionar, deve-se a minha surpresa ao adentrar, paralelamente às composições estritamente poéticas, o mundo do teatro de Hernández. Explico. Sendo a obra de Chico Buarque de Hollanda a coluna vertebral de minhas pesquisas sobre a canção popular, o título da peça do poeta espanhol“ Quién te ha visto y quién te ve ” remete à famosa canção do compositor brasileiro... “Quem te viu, quem te vê”. Em que pese este ter desenvolvido o conteúdo existencial e amoroso em de muitas de suas letras e ser um mestre das imagens, como Hernandez, não nos estenderemos aqui em um comparativo; apenas assinalo o famoso verso similar, pois não o encontrei em letra de nenhum outro cancionista.
Quanto à peça, é a primeira composição dramática do poeta escrita em 1933 aos 23 anos, e publicada no ano seguinte na revista Cruz y Raya. Trata-se de um auto sacramental à semelhança dos autos sacramentais áureos, gênero que teve sua culminância, como todos sabemos com don Pedro Calderón de la Barca. Hernández apresenta um conceitual baseado na criação, caída e redenção que remetem às três etapas da história da humanidade. O personagem chamado “homem” luta ferozmente com suas paixões e desejos. Agregam-se como personagens a “carne”, dançarina eterna; o “desejo”, espectador exigente, e os “cinco sentidos”, que os coloca em perspectiva.
Integrando o mundo dos poemas, e para objetivarmos agora o tema-título desse ensaio, considero “Depois do amor”3 a síntese de seu pensamento (demonstrado também no gênero dramático). Vou transcrevê-lo na tradução de Tatiana Faia, a premiada escritora e tradutora portuguesa e em seguida comento as imagens-chave referentes à visão singular que mencionei.
Depois do amor
Não pudemos ser. A terra
não pode tanto. Não somos
tudo a que se propôs o sol
no seu ensejo distante.
Um pé aproxima-se da claridade.
O outro insiste na escuridão.
Porque o amor não é perpétuo
em ninguém, nem sequer em mim.
O ódio aguarda a sua vez
no mais fundo do carvão.
Vermelho é o ódio e bem-nutrido.
O amor, pálido e solitário.
Cansado de odiar, amo-te.
Cansado de amar, odeio-te.
É tempo de chuva, é tempo de chuva.
E num dia mais triste que todos,
triste por toda a terra,
triste de mim até ao lobo,
dormimos e acordamos
com um tigre entre os olhos.
Pedras, homens como pedras,
endurecidos e cheios de rancor
colidem no ar, onde
as pedras colidem subitamente.
Solidões que hoje retrocedem
e ontem juntavam os rostos.
Solidões que no beijo
guardam o rugido surdo.
Solidões para sempre.
Solidões desamparadas.
Corpos como um mar voraz,
contrariado, furioso.
Solitariamente atados
pelo amor, pelo ódio.
Os homens surgem pelas veias,
cruzam as cidades cheios de ira.
No coração tudo
se enraíza solitariamente.
Passos solitários ficam para trás
como se submersos, no fundo da água.
Só uma voz, ao longe,
sempre ao longe a ouço,
acompanha e força-me a ir em frente
como um pescoço acima dos ombros.
Só uma voz me arrebata
deste intricado andaime
de pêlo retorcido
e eriçado que visto.
Ventos secos não podem
secar sumarentos mares.
E o coração permanece
fresco no cárcere da sua colheita
porque essa voz é a arma
mais terna das correntes:
“Miguel, eu lembro-me de ti
depois do sol e do pó,
antes da própria lua,
túmulo de um sonho de amor.”
Amor: afasta o meu ser
e construindo-me, dita
uma verdade como um sopro.
Depois do amor, a terra.
Depois da terra, tudo.
As contradições entre amor e ódio são explicitadas em dois campos semânticos distintos logo de início nos versos “Um pé aproxima-se da claridade/O outro insiste na escuridão.” Esses campos no entanto, se fundem organicamente na imagem da terra, lugar da integração que se constitui a partir do amor. O eu-lírico, ao final, conclui com o pronome tudo, conceituando, portanto, como absoluto todo o “depois”, a partir da integração física do amor na terra: “Depois do amor a terra/ Depois da terra, tudo”. Mas, como Hernandez constrói esse conceito?
O eu-lírico inicia um lamento com o verso “Não pudemos ser”. A partir daí passa a alternara explicação dos sentimentos que o movem e que o sustentam e, já no 7º. verso de um poema construído com 64sintetiza essa explicação começando com a conjunção “porque”: “Porque o amor não é perpétuo em ninguém, nem sequer em mim”. Essa é uma afirmação que nos traz um absoluto existencial, concentrado no pronome indefinido “ninguém”. Esse absoluto negativo, da falta, é apresentado com o contraponto do positivo por outro pronome “tudo”, em “No coração tudo se enraíza solitariamente” e no final filosoficamente pacificador: “Depois da terra, tudo”.
Antes desse final, no entanto, é descrita a turbulência que envolve o eu-lírico, centrada na imagem da “pedra”, nos versos “Pedras, homens comopedras, /endurecidos e cheios de rancor/ colidem no ar, onde as pedras colidem subitamente.” Imagens que reiteram o contraponto às do sol e da claridade. Frescor que é trazido por uma “voz” amorosa que o “arrebata”. “Só uma voz, ao longe/sempre ao longe a ouço/acompanha e força-me a ir em frente.” “Só uma voz me arrebata/ deste intricado andaime/de pelo retorcido/e eriçado que visto.” Essa voz traz o sentimento do amor rememorado com a imagem do “longe” e se concretiza no tempo-espaço existencial do presente como força que impulsiona.
O sentimento de tristeza, inexorável por causa do contexto das “pedras” que “colidem” é retratado metaforicamente pela imagem da “chuva” como elemento interferência no equilíbrio natural, nos versos “É tempo de chuva, é tempo de chuva”, em oposição à leveza dos dias luminosos de sol, Os sentimentos que se agregam são reiterados pelos vocábulos escuridão ,pálido, solitário, solitariamente, correntes, ira, triste, pedra, voraz, contrariado, furioso, rugido surdo , rancor, colidem, solidão, desamparadas, ventos secos, cárcere, túmulo, ruínas...
Embora o que era uno não possa se sustentar, como nos dizem os versos: “Solidões que hoje retrocedem/e ontem juntavam os rostos.” o poema indica que “o coração permanece fresco” no presente, porque existe a sustentação do bom pela voz rememorada do ontem:... “essa voz é a arma mais terna das correntes”. Os vocábulos “arma” e “terna” representam a possibilidade de junção dos campos opostos.
No remate, o eu-lírico apela à emoção para que o leve à verdade. E pede: “Amor: afasta o meu ser das suas primeiras ruínas/e construindo-me, dita uma verdade como um sopro. ”Em palavras menos poéticas eu traduziria esses versos assim: é preciso todos os dias buscar o ser poético que a vida de lutas teima em renegar, pois só nesse estado [poético] nos fazemos humanos.
Miguel Hernández escreveu sua obra na Espanha do autoritarismo, da perseguição às liberdades e do desrespeito à autonomia de pensamento; o soldado das palavras se expandiu a resistência do amor. Quando Madri cai sob Franco em 1939, Hernández tenta fugir para Portugal, para pedir asilo à embaixada do Chile, mas é preso na fronteira e entregue às autoridades espanholas.
Nós, como indivíduos, poetas ou não, mas sabedores da força das palavras e de seu poder transformador, precisamos honrar sua vida e sua morte, a dele e a de todos os que resistem às guerras. É preciso resistir ao que desagrega e compreender a força criativa das emoções em nosso cotidiano; reinaugurar esse lugar individual, em linha com as necessárias transformações sociais. Miguel Hernández tomou essa decisão e a deixou como legado humanitário.
A resistência pelo amor
Concluo com seus versos famosos de “Guerras tristes”. Um pequeno poema de 9 versos que se sustentam no contraditório existencial que perseguiu o poeta em suas ações, a partir dos conceitos adensados de guerra x amor; o primeiro qualificado pelo sentimento adjetivado tristes, acompanhado pelo substantivo armas do mesmo campo semântico, com o qualificativo tristes repetindo-se por 7 vezes ladeado ainda pelos substantivos amor, palavras e homens.
“Tristes homens /se não morrem de amores” são para mim seus versos mais pungentes sobre o tema, que apelam à metáfora da morte para indicar a intensidade maior que é entregar-se totalmente ao outro, ao ser amado. Há lutas que são necessárias, nos diz Hernández, mas as que têm como objetivo o encontro pela paixão.
Esse poema retorna para mim a cada vez que vejo repetir-se o fracasso do diálogo e o erro de usar a guerra como instrumento de retaliação. Isso é o que nos deixa a todos, como seres humanos, menores, reféns da dissensão e da inutilidade de qualquer palavra. Ficamos tristes, tristes, sim, mas nunca sem a esperança de que, repetindo a poderosa palavra poética, consigamos continuar resistindo ao que não honra a nossa Humanidade.
Tristes guerras
se não é amor o fim.
Tristes, tristes.
Tristes armas
se não são as palavras.
Tristes, tristes.
Tristes homens
se não morrem de amores.
Tristes, tristes.4
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4 Hernández, M. Poemas de amor. Madri, Alianza Editorial Sa; 2013.
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